(Este blog é totalmente dedicado a Laura e Lara, para quem todas as mensagens que aqui posto, me dirijo. Sem dizer adeus.)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"Ele sorria de orelha a orelha"

Lembro-me quando ele veio para casa, era pequeno, muito pequeno, cabia inteiro nas minhas mãos e tinha umas orelhas engraçadas, eram enormes, quase que tropeçava nelas se eu não estivesse a exagerar só um bocadinho. Esteve connosco dezasseis anos, uma vida que para ele deve ter sido muito maior do que a que podíamos ver do lado de cá. Veio para fazer companhia à minha mãe e foi a minha mãe que passou a fazer-lhe companhia. Era muito bonito quando era pequeno e a pele era de uma suavidade imensa. Nas brincadeiras próprias da idade estragava sem querer tudo o que lhe aparecia pela frente, brinquedos e mais foram sendo trazidos ou dados pelos amigos e vizinhos para que o pequeno se sentisse feliz. Quando sorria, sorria de orelha a orelha, os olhos ficavam vidrados, abanava a cabeça e espirrava, quão engraçado era, batia com as mãos e os pés no chão como se estivesse a dançar o samba, como se ele soubesse o que isso era mas para nós parecia e ria-mos junto com ele. Quando ficou maior e a chamada adolescência chegou, ficou musculoso  os braços e as pernas eram fortes e não fazia mais nada do que correr, queria era liberdade, qual quê estar preso, queria era rua. Foi quando descobrimos que era meio surdo, e não tinha qualquer tipo de sentido de orientação. Perdia-se pelos campos e fazia a família inteira andar à sua procura, a chamar e chamar por ele mas ele nada, ele não ouvia e quando finalmente o encontrávamos parecia envergonhado mas a gente sabia que era tudo fita para inglês ver, na próxima oportunidade ele voltaria a fugir. Quis ter namoradas mas só gostou de uma e essa não o quis, estava apaixonada por outro, não sei sequer se algum dia deixou de ser virgem. Pobre rapaz! Viveu a vida como quis, não valeram de nada as reprimendas nem os avisos para se portar bem. Comeu e bebeu bem, sorriu e viveu feliz! Um dia quando era Verão e eu estava de férias fora de casa a minha mãe telefonou-me quase a chorar, a dizer-me que ele tinha tido uma espécie de AVC se assim se pode chamar, que ficara como que dormente do lado direito e parecia que tinha ficado cego. Estava a morrer e era óbvio que não havia nada a fazer. Disse para mim mesma que era uma coisa natural, afinal já vivera até mais do que o era suposto viver mas doeu-me, doeu-me a sério, era uma parte de todos nós que iria partir, tantas histórias vividas, páginas partilhadas e todas elas iriam desaparecer como lágrimas à chuva. No dia seguinte a minha mãe voltou a telefonar-me. O inivitável tinha acontecido, já era tarde, ela chorou e eu também. Chamava-se Bobi e era o nosso cão, o nosso amigo fiel e meio louco, o nosso Bobi. 

2 comentários:

  1. O cão que "sorria de orelha a orelha"...
    Através do que escreve, a Emília surpreende-nos a cada linha!... Pela sua capacidade criativa, pela força que imprime à própria narrativa, pela ampla dinâmica de intertextualização, pelo modo como mantém o interesse do leitor até ao fim do texto, da história que conta.
    Uma contador exímia!
    Uma escritora.
    Não chegou ainda a hora de publlicar, de chegar ao público leitor, em forma de livro...

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  2. Obrigada...fico feliz por teres gostado!

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