Vi-a hoje, parecia calma e serena. Mas depois, depois a outra entrou e passou à frente de tudo e de todos como se a casa fosse dela e nós todos que ali estávamos dentro, não existíssemos. Olhei para ela, para a outra, estava com pressa e a pressa dela estava no rosto, na maquilhagem, na roupa, nos cabelos. Disse que se tinha esquecido de lá ir no dia anterior, e eu tive de saber que já ontem ela estava para vir, e não me interessava saber, hoje é hoje e ontem foi ontem, hoje as nuvens cruzaram-se ao norte e ontem não importa. E ela, ela que estava calma não disse uma palavra, mas o rosto se escureceu e pareceu-me que até a cor do cabelo naquele momento se tingiu de uma cor mais escura à medida que o meu olhar se lhe escorria pelo pescoço a baixo, as sobrancelhas arquearam, a boca minguou, o brilho do rosto se quebrou. E ela, ela que estava serena respondeu em voz ponderada e calma com o coração ao saltos e na garganta um grito, se era o que tinha nas mãos o que procurava, e então passe bem, tenha um bom resto de dia, obrigada. Olhou tão pouco tempo no rosto da outra, mas a outra também não se importou, levou o que ela tinha nas mãos e não lhe disse mais nada, nem um adeus, obrigada. E eu e os outros não a vimos sair e ficámos a olhar para ela que vi hoje. Para ela, que parecia calma e serena.
Leio e gosto!...
ResponderEliminarUm texto onde se cruzam vozes, onde se entra e se sai, onde não se é desejado, mas é prova que se existe, e os olhares se mexem, e há pasmo, mímica expressiva, e desconforto nos gestos, e um certo tom de indignação (profunda...) nas bocas, e no meio de tudo, desse rodopio de corpos, uma entrada de rompante, e um sair de cena (um sair de quem sai...) abandónico, exasperante. Depois, a indiferença...
Um excerto bem conseguido, especialmente com uma sintaxe escorreita, assertativo, onde se sente uma revolta interior a germinar subterraneamente, e palavras frias e secas, e palavras, falas, talvez sem deixar nada por dizer.
Gestualidade, diálogo e... surdez aparente, um círculo feminino, excessivamente feminino, onde cada um, cada uma que contracena esconce, esconderá furtiva e provavelmente os verdadeiros motivos de uma indisfarçável agonia relacional...
Então eu deixei os outros e a ela também que se dirigiu com um sorriso à próxima que lhe lhe apareceu à frente. Deixei e virei as costas a toda aquela sala, abri a porta e saí. Do lado de fora um vento quente levantou-se e trouxe não só vento e calor mas também folhas, pó, gente que se cruza, nuvens que passam e deixam a descoberto o sol, luz para o caminho. Cruzei a estrada sem olhar para trás, tinha saudades de casa, do que me esperava em casa. E ela que parecia calma e serena assim ficou, não só na sala como em mim porque ela também é assim não só se parece como é.
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