Tenho uma cicatriz na cara. No queixo. Mesmo a meio do queixo. A linha do corte parece a silhueta de uma montanha, de uma onda do mar, de um caracol de cabelo, de uma raiz de uma árvore, da curva de uma estrada, do meu sorriso interior inverso quando o de fora não sorri. Não preciso de me olhar ao espelho para saber aonde é que ela está, não preciso rever o meu reverso para relembrar a sua forma. Se tocar ao de leve com os dedos no meu queixo, cedo a descubro, a ela e à sua curva, à sua ruga, à sua idade, à sua história. Se lhe seguir com os dedos a linha da curva a leio como se estivesse às escuras.
O que aconteceu? Nada de mais, caí, escorreguei e cortei a pele. Tinha dez anos. Nada de mais...Foi o que disse para mim mesma quando ao me levantar do chão senti o frio na cara e o sangue a escorrer ensopando as minhas mãos que apalpavam para saber o que é que se passava, o porquê da carne estar tão flácida...Mas a seguir, a seguir a que me levantei e levantei também o rosto e vi a expressão dos outros a olharem para mim, as toalhas que foram chegando e partindo manchadas de sangue, trouxeram em mim o espanto e a frieza da incredulidade de que me tinha magoado.
Magoei-me e incomoda-me que cada vez que sorrio a cicatriz se mostre maior, que cada vez que me mostre triste a cicatriz revele a sua gorda ruga. Quase e digo quase que consegue passar despercebida se me olharem de cima para baixo mas não se me olharem debaixo para cima.
Uma cicatriz! E que importância terá isso! Um corte na pele!
Nenhuma se estivermos a falar de pele!
Toda se estivermos a falar debaixo dela, dela, da cicatriz!
Existem cicatrizes da alma, cicatrizes ocultas no inconscente, como as existem físicamente na ple da face oou em quaqluer outro ponto geográficoda mesma pele, cicatrizes fundas, disformes, superficiais, palpáveis, fruto de qualquer aleijão obtido nos encontrões por que um corpo passa no decorrer da vida, mas todas as cicatrizes têm uma tradução perceptiva, íntima e magoada, subjectivamente precoce, irreconcialiáveis com o nosso sentir, com o objecto que sentimos ser..
ResponderEliminarProceder à exegese do quanto pode revelar, explicar, traduzir, uma aparentemente estranha e insólita cicatriz é um verdadeiro trabalho hermenêutico, diversificado e profundo, conducente ao sentido, à reflexão, ao comentário.
Foi o que a Emília- quanto a nós... - quis dizer com este seu texto contundente, encorpado e sonoro.
Na realidade, qualquer cicatriz permanece, tem um ponto de apoio na Eternidade, porque foi o que restou, o que permanece a fazer-nos recordar o acontecimento, o facto...
Na face, uma cicatriz ainda se torna motivo de maior complexidade, e acaba por produzir um jogo de diversos planos que entram em dissonâncias e combinações, conforme a mímica do rosto.
Resta-nos a estratégia do queixume, a dor sentida, a dor anunciada, a dor que seria, se não fosse não nos doer, especialmente nos doer a alma! Sensilvelmente.
A cicatriz existe, todavia nunca talvez existisse se não fosse o olhar dos outros, e o que eles poderão extrair dela em relação ao nosso percurso!
A preocupação e o significado.
A vírgula e o ponto final.
Gostei muito, Emília!... Gostei, em particular do diálogo íntimo que a própria percepção de uma cicatriz e dos seus múltiplos significados poderá originar!
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