(Este blog é totalmente dedicado a Laura e Lara, para quem todas as mensagens que aqui posto, me dirijo. Sem dizer adeus.)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

"Era de manhã..."

Era uma vez...

Era uma vez uma rapaz, pobre, descuidado e feio, muito feio. No entanto era simpático, uma pobre alma bela no seu coração puro de sensibilidade ingénua de criança grande que só quer ser amado porque amar ele ama todo o ser que se lhe chega sem pedir nada. As gentes, os animais, a água, o vento, o ser que respira e o inanimado aos olhos pouco treinados que ali não vêm, na árvore, na pedra, na folha que cai a áurea perdida e encontrada do pó das estrelas.
Ele era assim, belo e feio, dependendo do ponto de vista de quem olha. Hoje era feio, e o feio era também gago desde muito pequeno. 
Estava ele a pensar na estação de comboios enquanto esperava pela sua partida, a pensar nos seus e na visita que lhes faria mais logo quando chegasse a casa. A casa que sempre o acolheu e entendeu e o soube amar como era. Estava ele assim distraído quando uma bela mulher com ele se cruzou, e ele não mais dela pode desviar o olhar. Ela tinha caminhado mais uns passos para a frente dele e com os pés já no limite da linha de comboios inclinava o corpo a tentar vislumbrar a silhueta do que estava à espera. Era de manhã, ainda cedo e uma luz ainda ténue a despertar o dia atravessava as telhas partidas do tolde que a cobria, modelando-a numa sombra-luz que a transformava num ser mítico e perfeito. 
E ele assim a olhava mas o olhar não lhe chegava e a ela se aproximou embora a medo, tremendo no corpo e na voz, tornando-se ainda mais gago do que o habitual.
- Me-ni-na. Eu que-ri-a a-ma-la!!
Ela virou-se assustada, não conhecia aquele homem que a abordava! 
- O quê? 
O feio não leu no rosto dela o susto e continuava encantado, perplexo e rendido ao ser que à sua frente estava.
- Me-ni-na. Eu que-ri-a a-ma-la!!
E ela assim o entendeu, levou as mãos ao peito, suspirou fundo e como que quando uma criança nos pede algo e a ela não sabemos recusar, assim fez ela e lhe entregou o que ao peito encostado tinha. A carteira!! 
Ele de carteira nas mãos, triste e lágrimas nos olhos disse. 
- Não me-ni-na, eu que-ria a-ma-la de co-ra-ção e não a-ma-la da car-tei-ra!!
E assim tudo se perdeu porque ela não o entendeu!! O dia se fez noite e tudo adormeceu!

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Deixem-me rir, deixem-me rir alto, da loucura que nos invade no momento em que se ri, de gargalhadas sonoras, estridentes, incomodativos, censuradas, reais e verdadeiras. Deixem-me rir do meu próprio riso que me faz esquecer qual o riso primeiro. Deixem-me rir sem memória, sem saber do que rir, rir apenas rir. 
Deixem-me rir, ficar no rir. Não me façam parar nessas curvas , não me façam abrandar nessas linhas, deixem-me rir como se não soubesse o que era e mesmo agora o tenha descoberto, e como prenda aberta deixem-me tomar posse do meu novo brinquedo, desmonta-lo e monta-lo as vezes que quiser mas que seja meu, assim como veio assim quero que fique, com longas e demoradas cerimónias. Deixem-me rir antes que me esqueça...

sexta-feira, 9 de novembro de 2012


Fazer do pensamento lazer, ócio do Tempo e transforma-lo em prazer de ser. Escrever é ter coragem de deixar partir, porque quando escrevo e em seguida olho para o que ficou para trás, faz-me ver que já não sei se fui eu que dei uso à tinta, não que não me reconheça no que está escrito mas porque me olhei no que escrevi e no que disse e já não sou mais quem era, e faz-me pensar se quero ser o que está por diante ou se não será melhor ficar como se está.  Ainda assim a coragem sempre vem e sei que depois deste ponto final tudo vai mudar. Seja...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Cicatriz"

Tenho uma cicatriz na cara. No queixo.  Mesmo a meio do queixo. A linha do corte parece a silhueta de uma montanha, de uma onda do mar, de um caracol de cabelo, de uma raiz de uma árvore,  da curva de uma estrada, do meu sorriso interior inverso quando o de fora não sorri. Não preciso de me olhar ao espelho para saber aonde é que ela está, não preciso rever o meu reverso para relembrar a sua forma. Se tocar ao de leve com os dedos no meu queixo, cedo a descubro, a ela e à sua curva, à sua ruga, à sua idade, à sua história. Se lhe seguir com os dedos a linha da curva a leio como se estivesse às escuras. 
O que aconteceu? Nada de mais, caí, escorreguei e cortei a pele. Tinha dez anos. Nada de mais...Foi o que disse para mim mesma quando ao me levantar do chão senti o frio na cara e o sangue a escorrer ensopando as minhas mãos que apalpavam para saber o que é que se passava, o porquê da carne estar tão flácida...Mas a seguir, a seguir a que me levantei e levantei também o rosto e vi a expressão dos outros a olharem para mim, as toalhas que foram chegando e partindo manchadas de sangue, trouxeram em mim o espanto e a frieza da incredulidade de que me tinha magoado. 
Magoei-me e incomoda-me que cada vez que sorrio a cicatriz se mostre maior, que cada vez que me mostre triste a cicatriz revele a sua gorda ruga. Quase e digo quase que consegue passar despercebida se me olharem de cima para baixo mas não se me olharem debaixo para cima. 
Uma cicatriz! E que importância terá isso! Um corte na pele! 
Nenhuma se estivermos a falar de pele! 
Toda se estivermos a falar debaixo dela, dela, da cicatriz!